(*) Por Nádia Rebouças
Estava eu, no trocador para visitantes, vestindo uma roupa especial. Fantasia de mineira. Estranho estar com uma couraça dura, um capacete com luz, botas. Meu corpo tentava se ajeitar dentro de tudo aquilo. Sem perceber, ou ter tempo de pensar, já estava dentro de um enorme elevador, cheio de grades e de operários, todos vestidos como eu. Eu e Paula Sabóia estávamos tendo a experiência incrível de baixar para mais de 500 metros do solo gentil.
Começamos a andar pela mina, por partes muito bem arrumadas, com salas de aula para conversas sobre segurança, com outras salas para reunião, onde numa delas conhecemos muito sobre os processos de mineração. Seguimos andando pelos túneis, ouvindo o engenheiro que nos acompanhava. Todos fumavam, inclusive eu. De repente uma cancela!
Um operário estica a mão e no jogo dos gestos percebo que devo entregar meu cigarro a partir daquele ponto. Deixamos ali o vício e seguimos por corredores cada vez mais escuros, onde a luz que eu carregava no meu capacete mostrou sua utilidade. As emoções são inúmeras por estar dentro das entranhas da terra. Violando de certa forma a mãe Terra. Eu nunca esquecerei.
Foram essas lembranças que voltaram intensamente acompanhando passo a passo todas as notícias sobre os mineiros do Chile. Quando voltei à cancela, lá estava o mesmo operário me devolvendo meu maço de cigarros, mas aí de forma surpreendente escuto: - “Portuguese”... E eu, meio atrapalhada, levei alguns segundos para perceber que aquela era uma pergunta e que ele apontava com os dedos as letras no maço de cigarros. Olhei para ele e falei em português, sim eu falava português! Recebi um abraço que nunca esquecerei. Ele traduzia o que fui entender dias depois quando entrevistando os mineiros.
Ele era angolano, contratado para trabalhar durante todo o ano, com direito a 20 dias de folga. Estava perdido numa mina, há 500 metros debaixo da terra, cercado, e numa cidade onde se fala duas línguas oficiais (africâner e inglês), além de mais 9 idiomas de origem tribal. Eu ser uma pessoa que falava português era simplesmente um presente para ele!
A mídia acompanhou a saga dos mineiros, quis transformá-los em celebridades instantâneas quando o resgate aconteceu com resultados acima do esperado. Conseguiram boas audiências com uma boa notícia, para surpresa do jornalismo tradicional. Estávamos todos assistindo a humanidade.
Tudo aconteceu como uma lição ao mundo, sob muitos aspectos. Mas eu tinha razões de essência para sentir e estar com eles. Conheço minas subterrâneas e conheço os mineiros. Conheço os supervisores desses trabalhadores de turno. Ao longo de nossas vidas, vivemos do conforto que o desconforto deles nos oferece. Tudo a nossa volta é feito de minério e são muitos, que em todo o mundo, estão em minas submersas ou a céu aberto, nos oferecendo seu trabalho. Um mineiro de turno, especialmente aquele que trabalha no turno de zero às seis horas da manhã tem uma vida inteiramente diferente da nossa. Por isso não fiquei nem um pouco espantada com a incrível capacidade de organização que tiveram e que representou vida para todos eles. Eles sabem que precisam se proteger, trabalhar em parceria porque as dificuldades são muitas.
Na África do Sul a maioria dos mineiros é negra. Brancos, quero dizer loiros, só os engenheiros que estão nos cargos de gerentes. A maioria sequer era da África do Sul, vinham de países mais pobres da África como Angola, Moçambique, Guiné. Vivem em hostels. São muitos homens morando na mesma casa. Nas minhas visitas muitas vezes me perguntei se eu estava num internato, num sanatório. Vão com transporte da empresa para o trabalho, lá no fundo da terra. Lá permanecem por 8hs, tendo apenas água para beber (era assim até cinco anos atrás). Voltam para os alojamentos. Ficam o ano todo longe das famílias, presos a um contrato que, quando termina, possibilita que tenham 20 dias de descanso.
Aqui no Brasil os mineiros têm melhores condições, mas com muitos desafios no seu trabalho, especialmente em relação à segurança e qualidade de vida. Em comum: o orgulho de ser mineiro. Vimos isso nas reportagens e eu me pergunto que tipo de mistério existe na vida dura desses homens que fazem com que sintam paixão pelo seu trabalho, muitas vezes em situação de profunda insegurança, como na mina do Chile, e ainda assim prefiram continuar sendo o que são: mineiros.
Conversar com eles é entrar num mundo desconhecido para nós. Descobrir que vivem no silêncio, quando estão “embarcados”, seja numa mina, ou num navio. É melhor não correr o risco de que palavras criem desavenças... O trabalho é focado e individual. Certa vez, aqui no Brasil, um mineiro me disse: - “É bom, porque tenho muito tempo para falar com Deus!”
Assim, esses homens, com pouco tempo para famílias e amigos, muitas vezes chegando em casa quando a família acorda e os filhos estão indo para a escola, ou saindo quando a família volta para casa. Dia e noite estão eles pelo mundo criando riqueza e conforto.
Mineiros, especialmente os que trabalham em turno, ocuparam as TVs em todo o mundo. Que essa saga seja transformada numa oportunidade única de cuidarmos deles, da sua segurança, da saúde, da vida. Que seja uma oportunidade para agradecermos.
Que seja uma oportunidade também para que todos os profissionais de comunicação e sustentabilidade percebam o desafio de seu trabalho para esse público, muitas vezes tão esquecido. Invisíveis também para a sociedade. Muitos com quem conversei nos últimos anos, talvez eu não veja nunca mais, como o angolano dos cigarros em português, mas quero que esse texto soe como um grande abraço, fraterno, solidário, capaz de traduzir a gratidão que sinto por tudo o que aprendi com todos eles.
(*) Nádia Rebouças (nareboucas@reboucaseassociados.com.br) é Colunista de Plurale (www.plurale.com.br)e diretora da Rebouças e Associados.
sábado, 30 de outubro de 2010
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